segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Retratos de Madrid

As mulheres de Concha Jareño

Os cílios grossos de seus olhos misturam-se no amontoado de leques do verão, meu olhar tropeça entre as tantas pernas brancas, compridas e finas que marcam no chão o compasso vermelho de seus saltos.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Retratos de Madrid

Vida subterrânea

O metrô é a veia que atravessa toda Madrid. Disse uma brasileira sobre o mapa da rede metroviária, distribuído aos usuários ou à estrangeira que decidiu enviá-lo junto às cartas para seu país: “Parece um bordado colorido”. São mais de 150 estações interligadas, e isso significa não apenas que sempre há ao menos duas maneiras de chegar onde seja, mas que há centenas de acessos para um mundo não secreto. Ao entrar em alguma dessas tantas bocas de metrô somos agarrados por seus dentes afiados e salientes - degraus que nos levam até a vida subterrânea. Uma vida cinza como o céu de Madrid. Uma vida cheia de avisos, carrinhos de bebê, contadores de tempo, luz fosforescentes e velhos que se emudecem quando não há escadas rolantes.

O cotidiano do metrô ensina manobras circenses para disputar um assento e facilmente se esquecer do direito de idosos, mães com crianças de colo, grávidas. Com tantas pessoas estranhas ao lado, na frente, entrando e saindo, muitas se deslocam pela multidão com dois fones de ouvidos enterrados debaixo dos cabelos. Resulta difícil perguntar as horas ou comentar que dia difícil hoje, veja, o verão está chegando, àqueles solitários glóbulos de sangue.

As veias dos corpos fazem sempre o caminho de volta. Aquelas que atravessam Madrid vêm e vão, espalham-se, penetram e abandonam mil corações, cada bairro, cada rua e janela fechada contra o frio. Quem atravessa as veias que atravessam a cidade são os músicos, ávidos inimigos dos fones de ouvido. Eles chegam com caixas de som e microfone, violão, sax, acordeão, violino ou flauta. No percurso de uma estação preparam o equipamento, tocam e buscam moedas pelos corredores.

A música cruza a vida de baixo e alcança o dia e avenidas: Canon em ré maior, de Pachelbel, Ave María, de Schubert. E, claro, a versão peruana da terrível Silence, de Paul Simon.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Retratos de Madrid

Fragmento noturno

Em Madrid se aprende que um centavo é dinheiro e troco. 2,99 € não são 3 €. Aqui é o lugar onde uma tortilha bem feita deve manter-se úmida, à cerveja pode-se misturar um pouco de Soda, onde os churros povoam as manhãs e onde os encantos da noite fascinam a todos. Essa é a hora quando os ônibus estão cheios de bailarinos bacantes, bailarinos bêbados, bailarinos bamboleantes. É quando os chineses fixam-se nas ruas com pequena bagagem de comida: sanduíches, refrigerante, macarrão.

A noite em Madrid só às dez estica suas asas. O dia também se atrasa: até às quinze é a manhã, depois é a tarde. Os lixeiros saem às ruas nas margens da madrugada. Como não querem virar abóboras, quinze minutos antes da meia-noite vêm e vão, mas deixam no ar um burburinho muito maior que as buzinas agudas dos motoristas apressados.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Retratos de Madrid

Fragmento

Madrid, cidade de pássaros falsos, faróis cantantes, quem cruza a rua tem a certeza de ouvir o som de uma ave para sempre escondida em asfaltos.

Retratos de Madrid

María

A cidade se move, brinca como dado sobre o mapa de seu país. Sente-se espanhola com o orgulho dos que levam no próprio nome a letra inédita em todos os alfabetos: España. Recebe imigrantes de todos os lados, até dos lados que não quer que sejam seus. Tem especial rivalidade com a Catalunya e sente-se mais simpática e amiga que esses vizinhos “fechados”. Os madrilenhos conhecem todo o desenho das terras e dos rios. O amor às províncias e cidades faz com que sempre lembrem delas ao soletrar qualquer palavra: M de Madrid, A de Almería, R de Rioja, I de Ibiza, A de Alicante. María.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Retratos de Madrid

Sobre nomes, sobrenomes, sobre números

Juan Martín Martín, Andrés González González, María Díaz Díaz. Qualquer estrangeiro se surpreende com os sobrenomes dobrados. É como se o chamamento da mãe tivesse ecoado na noite do parto o sobrenome do filho. (Na verdade, ele leva o primeiro sobrenome do pai e, depois, o primeiro da mãe).

À este berro soma-se a mania pelos números. Um madrilenho sempre diz tudo por extenso, como numa aula de matemática, seja quando se trata da conta do banco, do cartão de crédito ou do supermercado. Se lhe perguntar pelo código de barras de um creme de barbear, 728460901 jamais será sete-dois-oito-quatro-meia-zero-nove-zero-um, mas setecentos e vinte e oito milhões, quatrocentos e sessenta mil, novecentos e um. As matemática também vale para a hora: 09h43 não são nove e quarenta e três, mas dez menos dezessete.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Retratos de Madrid

Língua de mariposa

Eis a presença da palavra mais bonita, mais inteira e concisa: callejero. Vem de calle, rua. Adjetivo. Relativo a rua. Encerra tamanha intensidade e impacto em uma só palavra. A pronúncia em Madrid, distinta da galega ou da sulamericana, é /kaie/. Calle, o ca seguido pela i grega, i que levanta a língua até o céu da boca, língua de mariposa levanta vôo e deixa um sulco na palavra, cria relevos com a voz, inventa geografias.

Na cidade onde rua é nome, é qualidade e ação, as pessoas também inventam percursos infinitos para habitar o chão. Callejean, andam de calle em calle. Estão todos nas ruas, apesar dos baixos graus, as pessoas estão todos os dias nas ruas, suas mandíbulas não tremem, seus dentes não se chocam. Estão todas as noites nas ruas, cruzam a madrugada como se estivessem atravessando uma rua larga. Brincam de imitar a lua quando se metem por ruelas espremidas entre paredes e prédios, callejones. Perambulam como filhos das noites. Como filhos das ruas. Corazón callejero.

O
castelhano é leve como uma mariposa.

Por que andam tanto? Buscam seus caminhos, sendas, alguma via de acesso. A quê? Talvez a forma sobre forma, quadrado sobre quadrado dos apartamentos não deixe vazar a hemorragia dos sentimentos. Talvez o sentido não caiba no elevador, talvez tentou atirar-se da terraça. Caiu, estatelou-se. Talvez aqueçam seus corpos frios na caminhada. Ou, mais simples do que isso, talvez procurem de rua em rua, disfarçadamente, a nota de 500 euros que só vemos uma vez na vida e que por descuido alguém deixou cair uma certa tarde em um incerto lugar.